1. Ministros alertam para os riscos da ‘pejotização’ de trabalhadores durante audiência pública no STF
Em audiência pública realizada nesta segunda-feira, 6 de outubro, no Supremo Tribunal Federal (STF), o Governo do Brasil alertou para os riscos que a ‘pejotização’ causa aos alicerces do pacto do trabalho digno e da seguridade social, ambos previstos na Constituição Federal de 1988. Participaram da discussão os ministros Luiz Marinho (Trabalho e Emprego) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).
Messias definiu o fenômeno como uma “cupinização” dos direitos trabalhistas, que “corrói por dentro, silenciosamente, as estruturas que sustentam a proteção social”. Para ele, o país deve construir um modelo que “respeite a liberdade econômica, mas que também preserve o trabalho digno, a proteção previdenciária e a solidariedade entre as gerações”.
Na sequência, o ministro Luiz Marinho ressaltou que o regime do Microempreendedor Individual (MEI), criado para facilitar a formalização do microempreendedor brasileiro, tem sido desvirtuado para “mascarar contratos de trabalho” com características típicas de vínculo empregatício, como subordinação e jornada fixa. “Nossa responsabilidade é decidir se queremos avançar para a modernidade ou oficializar a fraude como normalidade”, afirmou.
A chamada ‘pejotização’ diz respeito à contratação de trabalhadores como pessoa jurídica para evitar o vínculo empregatício. A audiência pública foi convocada pelo ministro do STF Gilmar Mendes, no âmbito do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1532603, com repercussão geral sobre o tema.
O debate na Suprema Corte envolve três pontos: a competência da Justiça do Trabalho para julgar casos que envolvam alegação de fraude em contratos civis; a licitude da contratação de trabalhadores autônomos ou de pessoas jurídicas, à luz da liberdade de organização produtiva; e a distribuição do ônus da prova nas hipóteses em que se questiona a validade desses contratos.
JUSTIÇA DO TRABALHO — Para Messias, a competência da Justiça do Trabalho nos processos de ‘pejotização’ é uma exigência da Constituição. “É nela que se revela, sob o manto das aparências contratuais, a verdade material das relações laborais. É nesta jurisdição que o princípio da primazia da realidade cumpre seu papel constitucional: o de impedir que o direito seja manipulado como instrumento de exclusão”, argumentou.
“Negá-la seria enfraquecer o sistema de proteção social que garante o equilíbrio entre capital e trabalho e, em última instância, negar a essência do próprio Estado democrático de Direito”, alertou Messias.
ESCOLHA ESCLARECIDA — Outra questão abordada pelo advogado-geral da União foi a chamada “escolha esclarecida do trabalhador”, que seria suficiente para validar um contrato ‘pejotizado’. “Não há liberdade real quando a única alternativa é abrir um CNPJ (Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica) para manter o sustento da família. Não há autonomia quando o mercado impõe a ‘pejotização’ como condição para o emprego”, sublinhou Messias.
FORÇA DE NEGOCIAÇÃO — Nesse sentido, o ministro do Trabalho e Emprego acrescentou que o debate sobre hipersuficiência “não se caracteriza como verdade absoluta, porque o indivíduo, por mais formado que ele seja perante uma corporação, não tem a mesma força de diálogo e de negociação”, ponderou Luiz Marinho.
“Precisamos considerar quais são os conceitos do que tem relação de trabalho efetiva e que deve ser ancorada pela CLT — ou não. Portanto, se tem subordinação e a caracterização de relação de trabalho, portanto, deve ser CLT”, justificou o ministro do Trabalho e Emprego.
BASE DA PIRÂMIDE — O advogado-geral da União destacou que o fenômeno da ‘pejotização’, antes concentrado em profissões especializadas, tem se expandido para faixas de menor renda. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apontam que 56% dos trabalhadores demitidos que se ‘pejotizaram’ entre 2022 e 2024 recebem até R$ 2 mil mensais; outros 37%, até R$ 6 mil.
“Trata-se de categorias tradicionalmente celetistas, como garçons, vendedores, operadores de centros de distribuição, secretariado, construção civil e teleatendimento. Isso evidencia que já não estamos falando de uma opção de elites profissionais, mas de uma imposição silenciosa sobre a base da pirâmide social”, alertou Messias.
SEGURIDADE SOCIAL — Como salientou o advogado-geral da União, a ‘pejotização’ não impacta apenas o trabalhador contratado, mas todo o sistema de seguridade social. Messias informou que, entre 2022 e 2024, o fenômeno provocou um déficit estimado de R$ 60 bilhões na Previdência Social, além de perdas de R$ 24 bilhões ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).
O ministro do Trabalho e Emprego acrescentou que o debate sobre a ‘pejotização’ envolve impactos arrecadatórios e retrocessos em direitos e no progresso econômico do país. “Todas as conquistas de desenvolvimento que temos até aqui estão sendo colocadas em forte risco com o desmonte e enfraquecimento que ocorre caso a gente ‘libere geral’ a ‘pejotização’, como foi feito o processo de terceirização”, apontou.
“Está em construção um processo de enfraquecimento da estrutura de proteção ao trabalho”, ressaltou Luiz Marinho.
CERTEZA NEGATIVA — O advogado-geral da União argumentou ainda que é “preciso distinguir, com precisão conceitual e sensibilidade social, o que representa evolução legítima das formas de organização econômica daquilo que dissimula vínculos empregatícios e desprotege o trabalhador”.
Nesse sentido, com base no princípio da certeza negativa, Messias elencou situações que não se enquadram na ‘pejotização’: relação de franquia, com autonomia empresarial real; sociedades de propósito específico (SPE); consultoria independente, sem subordinação jurídica; e prestação de serviços B2B. “Ou seja, a ‘pejotização’ não é empreendedorismo autêntico, nascido da autonomia e da livre iniciativa”, explicou o ministro.
VALORIZAÇÃO DO TRABALHO — Nesse sentido, foi defendido pelo Governo do Brasil que seja construído um modelo que concilie inovação, eficiência produtiva e justiça social. “O Brasil precisa de um modelo de desenvolvimento que valorize o trabalho e garanta a segurança jurídica – mas, sob a égide do princípio da dignidade da pessoa humana, não a partir de uma lógica que, em nome da competitividade, transforme o trabalhador em prestador sem direitos e o cidadão em contribuinte de segunda linha, sem qualquer proteção”, resumiu Jorge Messias.